Programei Fagner no Deezer para ser a trilha enquanto ia cortando os tecidos que se transformarão em coelhinhos de Páscoa para distribuir às crianças e minha cabeça viajou! Senti perfumes, lembrei das roupas, dos sabores, da temperatura e dos locais aonde ao longo da vida ouvi Fagner. Ele é uma das minhas grandes memórias musicais, trilha sonora de longos anos…
Em 73 estava recém separada e ganhei o LP “Manera Frufru” que passou a morar no meu “3 em 1”. Para quem não teve um “3 em 1”, apresento o aparelho que surgiu no início da década de 70. Era bastante simples: tinha rádio AM e FM estéreo, toca discos, gravador cassete (“tape deck”) montados num único gabinete e um par de caixas acústicas independentes. Esta era a mais importante peça do mobiliário reduzido do meu primeiro apartamento de mulher separada com pouco mais de 20 anos e um filho de 9 meses. No apartamento ainda se “destacavam” uma mesa com 4 cadeiras, uma estante feita com tabuas que se equilibravam em tijolos, dois colchões de solteiro que simulavam um sofá repletos de almofadas. E claro que muitas plantas em algum canto para disfarçar o vazio. Foi uma experiência marcante. Medo da cama vazia, da responsabilidade de manter a “família”, ter que cuidar de alguém quando eu ainda precisava que cuidassem de mim. Lembro que alguns dias depois da mudança fui falar alguma coisa com o porteiro que perguntou quem era o meu marido. Disse sem qualquer constrangimento que não tinha marido, mas a partir daí percebi que ele me olhava com um certo ar de reprovação e por não ter um homem em casa mereceria menos respeito. Nunca levei a sério, mas até hoje me divirto ao imaginar como ele deve ter ficado com o cabelo em pé com o entre e sai de amigos e as tantas festas que rolavam ao som do velho e bom 3 em 1 principalmente quando se tocava Fagner. Quem conhece um bom compositor sabe que na receita da boa música tem uma parte que eu chamo de “exorcizar sentimentos”, quando se pode gritar com a certeza de que aquelas palavras correspondem ao seu desejo mais profundo. Por exemplo, em “Velas do Mucuripe” eu sempre delirava com o final que, além da poesia no jogo das palavras – “vida vento vela leva-me daqui” – naquele momento era o que eu mais desejava. Queria ir longe e acabei indo morar nos Estados Unidos…
Nas minhas andanças com Fagner, em 78 quase cortei os pulsos ouvindo “Jura Secreta”, composição de Suely Costa em parceria com Abel Silva, meu professor de português do cursinho vestibular. “Só uma palavra me devora, aquela que meu coração não diz…” repetia repetia repetia no 3 em 1… Incrível constatar que como antes dos 30 anos de idade eu era tão dramaticamente apaixonada! Ah, se eu soubesse o que viria aos 40, aos 50, talvez não tivesse me desesperado tanto… Mas com Fagner não tem outro jeito, há de se ser pateticamente visceral. Até hoje.
“Borbulhas de amor” – Tenho um coração, dividido entre a esperança e a razão – é a minha cara. “Traduzir-se” musicada sob o poema de Florbela Espanca – Minh’alma, de sonhar-te, anda perdida, meus olhos andam cegos de te ver – já fiquei rouca de tanto repetir e com “Espumas ao vento” – E de uma coisa fique certa, amor, a porta vai estar sempre aberta, amor, o meu olhar vai dar uma festa, amor, na hora que você chegar – é uma eterna realidade. Não sei quem espero, mas a porta está escancarada…
Fagner sempre faz uma revolução nos meus sentimentos. Traz saudades e tem a capacidade de tirar o mofo de paixões que jurava escondidas… Recentemente ele gravou “Paralelas”, do Belchior, e ao ouvir lembrei de uma das minhas grandes tragédias na cozinha. Era início dos anos 70, eu já era muito fraca com as panelas, mas a pedido de um amigo produtor musical que estava apresentando Fagner e Belchior ao mercado paulista, fiz um jantar. Era um grupo pequeno, consegui uma receita ótima de estrogonofe, escolhi um filet mignon de primeira, caprichei em uma boa dose de conhaque, mas boa vontade e bons produtos não significam bom resultado. O estrogonofe quando levado à mesa só não foi descartado pois os dois estavam famintos…. Não tinham vindo de pau de arara, mas era um tempo de vacas muito magras para eles que sonhavam com o sucesso e procuravam espaço para mostrar sua obra. Esta mesma obra que me fez companhia nesta tarde e me deu um enorme prazer de lembrar que naquela noite fui testemunha dos primeiros acordes, ideias, projetos…. Belas lembranças!
Em tempo : quem nunca ouviu o disco “Manera Frufru”, a razão desta viagem na memória, segue o set list :
- “Último Pau-de-Arara” (Venâncio / Corumba / J. Guimaraes)
- “Nasci Para Chorar” (Dion / Dimucci / versão: Erasmo Carlos)
- “Penas do Tiê” (Folclore/ adap. Raimundo Fagner)
- “Sina” (Raimundo Fagner / Ricardo Bezerra / Patativa do Assaré)
- “Mucuripe” (Raimundo Fagner / Belchior)
- “Como Se Fosse” (Raimundo Fagner / Capinan)
- “Pé de Sonhos” (Petrúcio Maia / Brandão)
- “Canteiros” (Raimundo Fagner/Cecília Meireles)
- “Moto 1” (Raimundo Fagner / Belchior)
- “Tambores” (Raimundo Fagner / Ronaldo Bastos)
- “Serenou na Madrugada” (Folclore / adap. Raimundo Fagner)
- “Manera Fru Fru, Manera” (Raimundo Fagner/R. Bezerra)
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